Artigo publicado na revista Take-Off Sirius de Dezembro de 2017
Entre Abril e Novembro de 2017, dois pilotos da Força Aérea Portuguesa (FAP) frequentaram o FWIT - Fighter Weapons Instructor Training - ou, à falta de melhor tradução, Curso de Instrutor de Tácticas de Combate em Caças. Em termos compreensíveis para o comum dos mortais, o FWIT é a versão europeia do curso Top Gun da aviação da Marinha dos EUA, celebrizado pelo filme protagonizado por Tom Cruise nos anos 80.
A realidade, contudo, é bastante mais dura e menos glamorosa que a história de Hollywood. O curso é comparável a um doutoramento em tácticas e armamento aéreos e significa meses de árduo estudo teórico e prático, em que cada missão é eliminatória.
“Vocês são o 1% do topo. A Elite. Os melhores entre os melhores. Nós vamos aperfeiçoar-vos ainda mais.” Esta parte do filme é verdadeira e já vamos ver como e porquê.
História
Historicamente, a base aérea de Leeuwarden nos Países Baixos foi a base de preferência para a formação de Instrutores de Tácticas de Combate em Caças, desde o período imediatamente posterior à II Guerra Mundial, dada a proximidade do campo de tiro e espaço aéreo disponível sobre o Mar do Norte. No início dos anos 80, promovido pelos pilotos da Bélgica, Dinamarca, Noruega e Países Baixos (EPAF), que integraram o programa de desenvolvimento e teste do F-16 nos EUA, foi estruturado o primeiro curso FWIT, baseado nos princípios que puderam observar no curso da Weapons School da Força Aérea dos EUA (USAF) em Nellis, e nas capacidades do F-16, então um caça de nova geração a entrar em serviço.O primeiro curso tinha então a duração de apenas três meses e armamento pouco variado, mas foi evoluindo com a introdução de novas tácticas e procedimentos, até aos quase sete meses da actualidade e armamento de última geração.
Com a modernização do F-16 para o padrão MLU, Portugal viria a juntar-se aos quatro países iniciais, no início dos anos 2000, passando desde então a participar com instrutores, alunos e aviões, nos cursos, que têm normalmente frequência bianual.
Selecção
Tal como na alusão feita anteriormente ao Top Gun, os pilotos de Caça seleccionados são normalmente os que se destacam como mais talentosos dentro das Esquadras de voo, nos seus países, mas que ao mesmo tempo mostram apetência pelas tarefas de instrução e são especialmente dedicados. Estes são critérios algo subjectivos, que vão sendo analisados ao longo do tempo, pelos instrutores das Esquadras, anteriormente graduados no FWIT. Como critérios objectivos, há o número de horas voadas em F-16, que deverá ser sempre superior a 500 horas, embora idealmente se aproxime mais das 1000. Devem também estar já qualificados como Líder de esquadrilha ou “Four-ship Lead” (4 aviões), embora muitos sejam já Comandantes de Missão, o que significa que podem comandar formações ainda maiores. Significa também, por norma, estar já há cerca de seis anos na Esquadra de voo.Este método de selecção tem vindo a provar estar perfeitamente afinado, sendo a percentagem de pilotos chumbados durante o curso, extremamente baixa - muito raramente mais do que um por curso e por vezes nenhum.
O número de pilotos escolhidos depende das necessidades de cada Força Aérea, o que no caso português variou entre um e dois por curso. No curso de 2017, baptizado “Here comes the Boom” levou a um total de 16 alunos de todas as nações, tornando-se o maior de sempre, eventualmente devido ao intervalo relativamente ao curso anterior ter sido de três anos e não dois, como normalmente. O número de alunos de cada país, deverá ser igualado pelo número de instrutores e aviões, a fornecer em cada curso.
Método
O Programa Curricular (Syllabus) do FWIT é em tudo semelhante ao americano anteriormente falado, com algumas adaptações às especificidades europeias. É constituído por quatro fases, todas elas direccionadas para duas vertentes distintas. A primeira é a de tornar o aluno FWIT um piloto de Caça de Elite e a segunda de ensinar o aluno FWIT a ministrar instrução aos pilotos menos experientes das suas Esquadras.A primeira fase começa com aulas teóricas e exames de avaliação durante cinco semanas, sobre temas tão abrangentes como armas, tácticas, dinâmica, balística, psicologia, nomeando apenas alguns. Segue-se a fase Ar-Ar, com o treino de defesa aérea e operações aéreas ofensivas. A terceira fase começa de novo com aulas teóricas, sendo depois treinadas as operações Ar-Chão ofensivas e defensivas e todo o tipo de armamento disponível para as executar. A fase final combina tudo o que foi assimilado nas fases anteriores e pretende simular missões, nas condições mais reais possíveis, em ambiente multiameaça e com integração das operações aéreas combinadas com meios terrestres e navais. Tal como em anos anteriores, a quarta fase foi deslocada para a Noruega, por permitir cenários de operação bastante mais alargados que nos Países Baixos.
No total são voadas e avaliadas 40 missões distintas, todas elas de carácter eliminatório. Em caso de não atingir os objectivos definidos nalguma missão, haverá mais duas hipóteses de repetição, sendo o aluno eliminado caso não o consiga fazer com sucesso.
A preparação do FWIT começa, contudo ainda no país de origem, nos três meses anteriores ao curso, para habituação à mentalidade e aos procedimentos standard, incluindo aulas teóricas e cinco missões que terão de ser completadas antes de começarem o FWIT.
Depois, já durante o curso, o estudo e preparação de cada missão, o briefing e debriefing são da responsabilidade do aluno, sendo que durante todo o processo de execução da missão, o instrutor irá “fingir” ser um piloto inexperiente, ao qual os verdadeiros alunos do FWIT terão de ministrar instrução. Em voo, o instrutor irá cometendo erros propositados, de maior ou menor gravidade, sendo a actuação do aluno face a estes erros, avaliada posteriormente e incluída no balanço de sucesso da missão.
No final do curso, concluído com sucesso, recebem finalmente o tão desejado patch azul, bordado a branco, que irão ostentar a partir de então, no braço esquerdo do fato de voo. Símbolo do estatuto adquirido, mas também de todas as dificuldades ultrapassadas para o atingir.
Desafios
O espectro de “chumbar” é em si só um factor de stress extremamente relevante para os alunos. Estes, são os depositários de um grande investimento feito pelas Esquadras, pela Força Aérea e pelas suas famílias, havendo, portanto, um constante sentimento de não querer “decepcionar” quem neles investiu e confiou. Contudo, esta pressão constante também alicerça a motivação necessária, para os alunos ultrapassarem os desafios diários a que são sujeitos. Chumbar, no caso português, seria mesmo uma estreia, pelo que nenhum piloto quer ficar nessa posição, de ser o primeiro a falhar o curso.Outra fonte de pressão é o facto dos alunos serem colocados fora da “zona de conforto”, já estabelecida na Esquadra de origem, onde estão habituados no dia-a-dia a serem os melhores. No FWIT, todos em seu redor são os melhores...! Já no decorrer do FWIT é inevitável começarem a falhar missões (estatisticamente na razão de uma em cada quatro) e a serem confrontados com as suas próprias limitações, mais vezes que o usual.
A tudo isto, há a adicionar a distância a casa e tudo o que isso implica em termos pessoais e de vida familiar, que se torna necessário gerir desde longe, durante vários meses. Além de conciliar com os longos dias de trabalho, por norma até ao limite das 12 horas, obrigatório por razões de segurança.
A exposição a estas dificuldades, de ordem maioritariamente psicológica, encerra um crescimento pessoal que os alunos têm de aprender a ultrapassar sozinhos, mas que os tornará mais fortes, primeiro enquanto homens e depois como pilotos e oficiais.
Futuro
Em duas das forças aéreas participantes (Noruega - RNoAF e Países Baixos -RNLAF) o F-35 – um caça de 5ª Geração - foi já introduzido ao serviço, o que significa que o curso terá que evoluir no futuro próximo. Em 2021 será realizado o primeiro curso de instrutores de tácticas, dedicado ao F-35 e designado WIC (Weapons Instructor Course). Isto significa que em 2019 será o último curso dedicado ao F-16, embora esteja prevista a integração de caças de 4ª e 5ª Geração nos cursos até pelo menos 2025, quando o F-16 será retirado de serviço nos Países Baixos.Em paralelo, os princípios teóricos utilizados no FWIT foram alargados dentro da RNLAF às asas rotativas (HWIT) e mais recentemente aviões de transporte (TWIC), sendo a intenção no futuro próximo, de proporcionar estes cursos a outros países que manifestaram interesse em participar.
Resultados
O resultado final será uma fonte de conhecimento técnico e teórico, materializada no piloto graduado, que o dará a beber às Esquadras portuguesas, à FAP e ultimamente à NATO e seus parceiros. Ao fim de 13 anos, a FAP tem neste momento o maior número de pilotos no activo graduados no FWIT, sendo o actual comandante da Base Aérea nº5 – casa das Esquadras de F-16 em Portugal - o primeiro graduado português no curso, em 2004. Isto significa que os ganhos em termos de conhecimento adquirido no FWIT, começaram já a propagar-se dentro da estrutura da Força Aérea, tanto horizontal, como verticalmente. Como exemplo, na RNLAF, o actual Chefe de Estado-Maior é graduado no FWIT, tendo reconhecido publicamente a importância do curso no desempenho das suas funções, em posições superiores na estrutura hierárquica. Isto acontece porque o FWIT é muito mais do que um simples acumular de conhecimento de tácticas aéreas, modificando mesmo o próprio modo de pensar, agir e responder aos problemas, em todas as áreas da vida dos graduados. Tem mesmo sido descrito por alguns pilotos, como o que em inglês se define um evento “life changing”. Muito mais que as Tácticas de Combate, o FWIT torna-se parte do pensamento crítico, da decisão, da acção e da liderança que acompanhará os alunos FWIT, muitos anos após deixarem de voar aviões. Não desprezável, é ainda a partilha de tácticas e procedimentos próprios de cada Força Aérea – algumas com experiência de combate real recente – com as suas congéneres, o que permite manter a actualização relativamente ao evoluir dos cenários de combate no mundo. Os pilotos graduados são ainda, dentro de operações reais, os elementos ideais para assessorar os Centros de Operações Aéreas Combinadas, mediante as capacidades de interoperabilidade com outras plataformas, adquiridas no curso.Dentro da FAP e por consequência para o país, os proveitos obtidos com a participação no FWIT, têm-se difundido já, além da cadeia hierárquica tal como referido, na interacção com outras frotas além do F-16. Tal ficou patente por exemplo, na organização de grandes exercícios internacionais em Portugal, direccionados para as frotas de transporte (EATT) e de asas rotativas (Hot Blade), com um sucesso notável e a elevação destes exercícios da Agência Europeia de Defesa a um nível superior, bem como do gigantesco exercício combinado Trident Juncture da NATO, co-realizado em Portugal em 2015.
Seja em exercícios, ou operações internacionais, como sejam o patrulhamento aéreo de países aliados da NATO, a FAP tem granjeado o respeito entre as suas congéneres, estando actualmente altamente conceituada internacionalmente.
Todo este sucesso está, contudo, assente numa simples filosofia de humildade perante o erro (aprender com o erro em vez de o esconder) e partilha de informação (partilhar, não guardar), entre outros princípios decorrentes dos “dez mandamentos” basilares do FWIT [Nota: ver caixa de texto abaixo]
À semelhança dos antigos Mestres d’Armas, que asseguravam a transmissão do conhecimento na arte da esgrima, os Instrutores de Tácticas de Combate em Caças, são os seus legítimos sucessores nos dias de hoje.
E muito mais.
10 MANDAMENTOS DO FWIT
1- És voluntário2- Respeita os que chegaram antes de ti
3- Sê impecável nas tuas palavras
4- Não faças suposições
5- Não leves as coisas para o nível pessoal
6- Aprende com os teus erros
7- Não culpes os outros
8- Há fazer e não fazer. Não existe tentar
9- Voa com o coração, mas combate com a cabeça
10- Bebe muito Jeremiah Weed
Agradecimentos: Maj. Nick, Crunch, Hitman, Splinter, Gunner, Pints, Ten. Jayme Tol, Alf. Marta Teixeira, 1ºSar Fernando Ferreira, RNLAF Public Affairs, RP FAP
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