A-7P: E DEPOIS DO ADEUS

Texto: Paulo Mata
Artigo publicado no jornal Take-Off de Agosto de 2014

A linha da frente a Esquadra 304 - Magníficos

Venerado por muitos, detestado por outros. Se há algo consensual, é que o A-7P nunca deixou ninguém indiferente. A comprovar esta afirmação, o facto de 15 anos após a sua retirada de serviço da Força Aérea Portuguesa (FAP), ter ainda uma extensa legião de admiradores (e censores também). E se estes últimos teimam em não esquecer os problemas que afectaram a frota a espaços, com alguns picos especialmente críticos, estranhamente (ou talvez não) foi quem com o avião mais privou, que mais o defende e admira. Pilotos e mecânicos do Corsair II, quase todos passaram por outras frotas – antes e depois. Quando se lhes pergunta com qual aeronave mais gostaram de trabalhar, respondem invariavelmente: “o A-7P”!
Para compreender as razões desta divergência de opiniões, contamos agora com o espaço temporal, que ajuda a colocar tudo em perspectiva, minorando questões sentimentais, que por norma distorcem a percepção da realidade.



Na verdade, a polémica que sempre acompanhou esta aeronave em Portugal, começou antes mesmo de tocar pela primeira vez com as rodas em chão nacional. No final da década de 1970, a Força Aérea necessitava urgentemente de substituir os obsoletos caças F-86F Sabre e Fiat G.91. Uma necessidade nascida de anos de embargos internacionais (especialmente americano), devido às guerras coloniais em que o país esteve envolvido até meados dessa mesma década, que impediam o acesso aos sistemas de armas desejados. Depois, seguiram-se as dificuldades financeiras do período pós-revolucionário, também altamente limitativas. Além de existirem ainda da parte americana muitas reservas em fornecer equipamento de primeira linha, por entre a instabilidade do período que se seguiu ao 25 de Abril de 1974, em que Portugal esteve à beira de mergulhar num regime comunista, obviamente contrário à ideologia e interesses dos EUA, num cenário de plena Guerra Fria, que então se vivia. Dentre Mirage F1 e III cogitados antes do fim da guerra do Ultramar, aos F-5E Tiger II e F-4 Phantom II pedidos aos americanos na segunda metade da década, a escolha definitiva viria a recair sobre o A-7 já em 1979, por várias razões próximas. Por um lado, a referida falta de verbas para adquirir a primeira escolha, que era então o F-5E (o F-4 cedo deixou de ser ponderado), mas cuja compra obrigaria a contrair um empréstimo de financiamento, para além das contrapartidas pelo uso americano da base das Lajes (então orçado em 72M USD). Por outro, dentro do contexto da Guerra Fria e da lógica de defesa da NATO, sendo Portugal um país de retaguarda relativamente ao Pacto de Varsóvia, a prioridade num hipotético cenário de conflito, seria para o nosso país, a salvaguarda das linhas de abastecimento do Atlântico e portanto o ataque a alvos de superfície marítimos. Relegando, por isso, a defesa aérea para um papel secundário.

5545 um TA-7P, a versão bilugar do Corsair II

Mediante estas premissas, foram sugeridos a Portugal o A-4 ou o A-7, aviões de ataque operados pela marinha americana. Dentro das limitações orçamentais referidas, seria finalmente eleito o A-7, numa responsabilidade que se pode afirmar pessoal do então Chefe do Estado-Maior da Força Aérea, Gen. Lemos Ferreira. Relativamente à versão A, inicialmente proposta pelos americanos, o caça a adquirir teria assinaláveis melhorias ao nível do motor e potência disponível, dos sensores e equipamento electrónico, armamento, sistemas de autoprotecção e especial relevância nos sistemas de navegação e tiro computorizado. Receberia a designação P, que algumas fontes relacionam com “Portugal”, outras com “Plus”.

O A-7P manteve os canhões da versão A-7A mas ganhou a electrónica da versão E

A primeira razão de incompreensão do A-7P residirá porventura aqui. Após a retirada do F-86 – um caça de defesa aérea - em 1980, o seu substituto era nitidamente limitado para essas funções. Em contrapartida, o país ganhava capacidade de ataque a alvos de superfície (terra e mar) como nunca antes tinha possuído: um sistema de inércia (INS), permitia o ataque a alvos com precisão, facto especialmente importante no ambiente marítimo, onde não existem pontos de referência para navegação ou largada de armamento. Possuía além disso, radar de acompanhamento do terreno, que permitia voar a baixas altitudes, executando com eficácia a penetração em território hostil. Pela primeira vez também, um caça nacional tinha Equipamento de Protecção Electrónica (EPM), quer activo quer passivo, tão almejado pelos pilotos portugueses desde os tempos de combate na Guiné e Moçambique, em que os mísseis terra-ar causaram baixas e limitações nas operações dos Fiat G.91.

A chegada a Monte Real das primeiras unidades do A-7P em 24 de Dezembro de 1981

Após um período de cerca de três anos sem sobressaltos de maior nos céus nacionais (entre 24 de Dezembro de 1981 quando chegaram as primeiras unidades e 7 de Fevereiro de 1985 quando se deu o primeiro acidente em Portugal), iniciou-se uma década crítica na operação da frota, durante a qual ocorreram 13 acidentes (mais um nos EUA antes da entrega à FAP ainda em 1984), dos quais resultaram a perda de 16 aeronaves. Foi este registo de acidentes anormal, relativamente ao número de horas voadas, outra das razões para a “má fama” que granjearia o Corsair na opinião pública portuguesa.




Se analisarmos as causas próximas destes acidentes, pode concluir-se com algumas reservas, que estas estão divididas entre falha humana (6), falha mecânica (4) e colisão com aves (3). Sucedeu ainda outro acidente de causa nunca apurada.
As células de A-7A, modernizadas para o padrão A-7P, tinham em média mais de 3000 horas de voo à chegada a Portugal. Algumas mais de 4000. Ainda assim, por “culpa” do avião em si, sucederam apenas quatro acidentes em 64.000 horas de voo, o que se situa já dentro de parâmetros mais aceitáveis. As restantes causas, podem explicar-se por várias razões e eventualmente nenhuma em particular. As missões de ataque a baixa altitude por exemplo, facilmente potenciavam os bird strike. Este tipo de missão caiu hoje-em-dia em desuso, devido principalmente à evolução do armamento de precisão, que por sua vez alterou as tácticas de emprego. A exposição dos caças nas zonas problemáticas com aves, está por isso agora praticamente limitada à aterragem e descolagem. Há actualmente ainda o cuidado redobrado na planificação das missões, tendo em conta a época do ano e as rotas migratórias das aves, para evitar ao máximo o risco de bird strike.


O 15133 foi a última aeronave acidentada, tendo o piloto felizmente conseguido ejectar-se com sucesso em Julho de 1995

Relativamente aos acidentes de causa humana, as opiniões divergem, havendo quem acredite que estão intrinsecamente ligados à exigência que a aeronave requeria dos pilotos, devido às questões tecnológicas associadas e às missões que estavam atribuídas (que requeriam muito tempo em voo a baixa altitude com condições meteorológicas adversas). Ao contrário do F-16 e dos caças da nova geração, em que a informação é quase toda ela integrada de forma automática pelo computador de voo, no A-7P era o piloto que tinha de fazer a integração de toda a informação táctica e de navegação, disponibilizada pelos diversos sistemas da aeronave (INS, Radar e Radar Altímetro, PMDS, Computador de tiro e de Navegação, RWR, ALQ131, Rádios e IFF, selecção de armamento, etc.). Esta situação fazia com que muita da atenção do piloto estivesse voltada para resolver situações no interior do seu cockpit, resultando em muitos casos, em que ao voar baixo e a grande velocidade, não fosse possível evitar acidentes. O risco subia ainda em situações de maior complexidade das missões e de meteorologia marginal, efectivamente onde a maioria dos acidentes aconteceram.
Estas limitações seriam ultrapassadas, através da adequada selecção de pilotos e de um treino de elevada qualidade e rigor, que exigia muita supervisão e muito acompanhamento pelos pilotos mais experientes, ao longo da sua permanência nas Esquadras.


Esta tese não é contudo consensual, havendo quem a rejeite liminarmente, bem como à falta dum simulador (apenas no início da década de 90 ficou disponível) que permitisse treinar emergências, alegando que nada alteraria relativamente aos acidentes ocorridos. De notar ainda que, dos seis acidentes de indigitada causa humana, dois foram colisões em voo, ao que consta potenciadas pela dificuldade em manter contacto visual em formação cerrada dentro de nuvens.

Formação de 12 Corsair II no Festival Aéreo de 1994 no Montijo

A terminar a lista de queixas dos Corsair que envergaram a Cruz de Cristo, estão os baixos níveis de operacionalidade que muitas vezes se apontaram à frota. E mais uma vez, uma análise mais aprofundada permite verificar que a aeronave em si, pouco teve a ver com tal fama. Existiu uma dificuldade mais ou menos constante na aquisição de sobresselentes para a manutenção, o que em muito complicava os trabalhos, obrigando por vezes a “canibalização” de algumas aeronaves para permitir a operacionalidade de outras. Contudo, apesar de ser obviamente um problema de carácter administrativo e não técnico, conseguiu-se de um modo geral manter níveis de prontidão de aeronaves, de acordo com as necessidades dos pilotos existentes à época. Factual, há apenas a apontar ao aparelho, os cerca de dois meses em 1988, em que a frota esteve parada por precaução, devido ao um problema detectado no motor (os injectores danificavam as câmaras de combustão), que seria resolvido de modo positivo pela manutenção da Base Aérea nº5, nesse espaço de tempo.


15521 em testes de motor

Escalpelizados os argumentos dos cépticos do A-7P, importa saber o que advogam os seus defensores. E são muitos.
Com o A-7P, a FAP entrou na idade moderna da aviação de combate. Evoluíram técnicos e pilotos, com as novas tecnologias que aportou. Evoluiu a Força Aérea também com novos conceitos e novas capacidades.
Era uma caça-bombardeiro com capacidades notáveis a baixas e médias altitudes, onde estava no seu ambiente natural. A sua aparência externa austera contrastava sobretudo com a sua performance em voo: uma grande manobrabilidade e estabilidade que, com facilidade, interpretava fielmente os comandos do piloto.



O A-7P Corsair II foi a primeiar aeronave da FAP com capacidade "all weather"

Em exigentes exercícios internacionais, como o TLP (Tactical Leadership Programme) com a presença de aeronaves com as mesmas funções (Jaguar, Tornado, F-15, F-16, F-18, Mirage, etc.) foi em ocasiões a única aeronave a conseguir atingir o alvo e os objectivos de missão propostos. Nas funções específicas de ataque ao solo para as quais foi projectado e adquirido o A-7, apenas com o F-16 MLU voltou a Força Aérea a ter iguais capacidades.

15509 com míssil AGM-65G guiado por infravermelhos

Era, além disso, uma aeronave com bastante espaço para executar as tarefas de manutenção e trabalhar nos equipamentos, ao contrário das mais recentes, em que tudo se tornou muito mais apertado e de difícil acesso.
Os pilotos gostavam de o pilotar, os mecânicos gostavam de nele trabalhar. Está por isso desvendado o segredo da devoção, que lhe guardam os profissionais que com/nele trabalharam.


É impossível ficar indiferente ao aspecto imponente do Corsair

Mas até entre os simples aficionados da aviação, também o A-7 não é consensual, havendo quem o ache feio (e subscreva a alcunha SLUF - Short Little Ugly Fellow), tal como há quem o considere dos mais bonitos aviões de guerra que alguma vez voaram.
Quer se goste quer não, facto é que o A-7P Corsair II marcou uma época. E como qualquer individualidade de carácter controverso, despertou paixões. Para o bem e para o mal. Indiferença? Nunca!


O último voo de um A-7P Corsair II aconteceu a 10 de Julho de 1999 com o 15121 pilotado pelo Maj. Rui Elvas

A última rolagem no taxiway da BA5 com Maj. Elvas no 15521 escoltado pelo Ten. Araújo no 15531

O 15521 e 15531 em frente à torre de controlo da BA5 após o último movimento da frota A-7P
O 15531 num dos antigos abrigos da placa Alfa 1 da BA5, anos após a retirada de serviço
O 15521 ainda preservado em Monte Real, exposto ao público num dia de Base Aberta


Nota: Em Outubro de 2014 e ao fim de quase meio século depois do primeiro voo, a Grécia, último utilizador operacional do A-7 realizou o último voo da frota, encerrando mais um capítulo na história da aviação de combate mundial. Em Portugal, cumpriram-se 15 anos no dia 10 de Julho de 2014, desde que se calaram definitivamente os motores TF-30 dos A-7P.

2 Debriefing:

Paulo Porfírio disse...

Excelente aeronave concebida para a US Navy e também adoptada pela USAF. Além de nós os gregos também voaram A-7 numa versão mais recente que a nossa que era dos primórdios A-7A que levaram alguns "upgrades". Adorava vê-lo no ar com o característico "black smoke trail" e o som do fantástico TF-30 (diferente dos helénicos).Cumpri 37 anos na FAP e apesar de nunca ter estado colocado na BA-5 eram frequente visita à BA-6.Concordo plenamente com o texto acima...estão lá todos os argumentos que tanto caracterizaram os SLUF ao longo da sua vida operacional na FAP.

Unknown disse...

Excelente artigo. Simples, de linguagem clara e para todos, quer se seja entusiasta da aviação militar ou não.

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